domingo, 15 de março de 2009
VALE QUANTO NÃO PESA!
Mal começavam as férias escolares e nós sempre aguardávamos a mesma coisa: o convite da minha vó para os seus netos de Porto Alegre: "Querem visitar os primos em Rio Grande?" Nem preciso dizer qual era a resposta... um SIM em coro de todos e um sorriso de orelha a orelha na cara de cada um.
As viagens para Rio Grande eram ALGO!!!!!
Minha avó era daquelas braba-boa para os seus netos e uma braba-braba para os filhos dos outros. Isso não é uma característica muito louvável, mas ela era, realmente, assim!
Como para nós tocava a parte boa...aproveitávamos sem culpa!
Éramos uma turma de 4 ou 5, mais a vó.
Brigávamos para escolher os lugares no ônibus, mas uma única coisa sabíamos de antemão, com a prima mais velha ninguém queria sentar.
Ela vomitava a viagem inteira, geralmente nos primeiros 10 minutos de viagem já acontecia o primeiro desastre.
À ela cabia sempre a companhia da minha vó.
Arrumávamos as malas, ou melhor, naquela época as malas apareciam prontas em cima das nossas camas, coisa bem boa, nada de trabalho.
Minha avó preparava os lanches de véspera.
Lanches? Não! Um buffet à quilo, mas que para nós era livre!
Muitas recheadas, os sanduiches da minha vó se chamavam assim... os frios que vinham dentro eram nacos e não fatias, o que os deixava, realmente, "recheados".
Amendoim de carapinha. Um saco até o boca.
Cueca-virada envolta em açucar e canela.
Pastel de guisadinho com massa feita em casa, massa feita com cachaça, o que orgulhava muito a minha vó.
Vários ovos cozidos, pobre dos outros passageiros, ainda bem que éramos crianças. Que raiva deveriam ter dela.
Dois litros de refrigerante e água. Copos, guardanapos, paninhos para limpar as mãos, sal, etc...
Tinha um mundo na bolsa dela. Tudo que precisássemos, ali tinha. Era só pedir.
A viagem durava, aproximadamente, 5 horas. Destas, 4h e 40min passávamos envolvidos com a comilança, os outros 20minutos restantes eram gastos para irmos ao banheiro, quando parávamos no Paradouro Grill.
Um pouco antes da viagem sempre tinha um ritual.
Minha vó untava a barriga da prima vomitadeira com óleo, colocava uma chave na altura do umbigo e enrolava tudo em umas 3 voltas de papel de embrulho como se fosse uma faixa. Simpatia para fechar a goela de quem vomita em viagens, dizia ela para nós!
Morríamos de rir e não a invejávamos nenhum pouco. Ja tínhamos ido e voltado de Rio Grande uma dezena de vezes e isso nunca funcionou. Costumavamos cochichar baixinho que a goela dela nunca tivera chave, ai é que estava o "X" da questão, mas ninguém se atrevia a contar isso para minha vó. Vai que ela desistisse de viajar conosco.
A chegada em Rio Grande era sempre uma festa.
A casa da minha tia ficava quase na esquina. Aquelas casas fininhas e compridas que vão de uma quadra a outra e que a janela e a porta ficam na calçada. Não existia jardim. Casas de cidade do interior são assim: os dentes da calçada! A da minha tia deveria ser o canino da rua...
Meus tios tinham 6 filhos, isso quer dizer 6 primos, mais nós 5 que íamos de Porto Alegre para lá, totalizávamos, 11.
Onze crianças cheias de saúde e vontade de recuperar o tempo perdido pela distância.
Na entrada eu já sentia o cheiro da casa da minha tia...como as casas tem cheiro.
Era um cheiro gelado, mistura de mato, com aconchego e maresia. Dizendo assim parece estranho, mas era muito bom sentir aquele cheiro!
Logo, logo começaríamos a sentir os outros cheiros desta casa...cheiro de peixe frito, cheiro de bolo de chocolate, cheiro de café passado, cheiro de camarão, cheiro de bolinho de chuva. A semana prometia ser uma profusão de aromas e sabores.
Na casa da minha tia existiam muitas coisas diferentes: muitos enfeites importados, bailarinas de biscuit que mudavam a cor do seu tutu conforme o clima, de manhã poderiam trajar cor-de-rosa e a noitinha estarem de verde; tinham mesas entalhadas no marfim, vários objetos de corda e uma parede inteira de porta-retratos com as fotos de todos nós, nas mais diferentes idades. Deliciava-me naquele corredor. Passar por ali era quase como entrar no túnel do tempo.
À noite, o banho era uma confusão, parecia um lava-rápido num sábado de sol depois de vários dias de chuva. Uma fila interminável!
Nos quartos tirávamos os colchões das camas e espalhávamos sobre o chão, dormíamos em grupos.
Dormíamos era modo de dizer...ríamos até altas horas da madrugada.
De que ríamos tanto? Nem lembro mais. Hoje acho que eram os Anjos que nos faziam cócegas com as peninhas que caíam de suas asas.
Por isso era tão divertido rir e dormir com os Anjos.
Durante o dia, todas as refeições eram motivo de encontro.
Uma mesa imensa, toda arrumada, todos sentávamos ao redor!
Na cabeceira meu tio, de voz mansa e pausada, mas sem nenhum efeito sonífero, contava as histórias mais bonitas e interessantes que se podia escutar.
Jamais me cansei de uma delas que fosse. Era a última a sair da mesa, sempre queria ouvir mais.
Poderia passar ali todos os meus dias de férias, que ele não repetiria nenhuma.
Imaginava cada cena, cada pessoa e cada incidente que ele descrevia com detalhes e sem pressa para acabar.
Voltávamos de lá saciados. Cada um com uns 3kg extra no corpo e mais uns 50, na alma.
Ainda bem os quilos da alma não sobem na balança!
Certamente, nossos pais não nos deixariam voltar no ano seguinte.
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"Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes..."
(Cecília Meireles)
Que bons ventos te tragam mais vezes!